Os comics e o mundo do cinema, como meios gráficos, têm alimentado um ao outro ao longo do tempo, até mesmo antes da obsessão contemporânea pelo cinema de super-heróis. Um dos mais antigos é Flash Gordon, desenho animado entregue todo o domingo criado por Alex Raymond na década de 30. Influência direta dos relatos de Julio Verne e o personagem John Cartes do escritor Edgar Rice Burroughs, desenvolve dentro das suas vinhetas mundos fantásticos infestados por arquiteturas impossíveis, que nas décadas futuras se tornariam referencias claras na idade de ouro da ficção científica dentro do cinema.
As ambientações dentro do desenho animado seguiam duas claras vertentes: por um lado transportar o leitor até uma aventura claramente espacial, com tecnologias e invenções impossíveis, e por outro, evocar estruturas e paisagens terrestres históricas familiares. Com o objetivo de criar cenários exóticos e misteriosos, Alex Raymond combinou as culturas asiáticas (até então pouco conhecidas pelo mundo ocidental) com a arquitetura de vanguarda, tendo como resultado um estilo barroco porém eclético.
Por suas muitas vinhetas desfilaram estilos cheios de detalhes como o Art Déco, o expressionismo alemão e os trabalhos mais vanguardistas da escola Bauhaus, os quais foram sendo adaptados nas décadas em que os comics se desenvolveram, desde uma etapa inocente e kitsch até uma quase palpável no período de pós-guerra.
Toda esta criatividade conjunta deveria indicar que uma nova adaptação de Flash Gordon no cinema fosse um êxito tão somente pela qualidade das suas ambientações. A entrega de 1980 por parte de Dino de Laurentis optou por um look excessivamente fiel às vinhetas. Colorido e barroco, o filme tornou-se mais uma caricatura do que um retrato realista. Para a época do filme, todos aqueles elementos que alguma vez foram vanguarda se encontravam em um claro anacronismo. Este fato fez com que grande parte do público o visse como pouco inovador e atraente. Em plena "nova onda" da ficção científica onde filmes como "2001: A Odisseia no Espaço" ou "Star Wars" mostravam cenários preciosistas e quase palpáveis, Flash Gordon era uma paródia de si mesmo.
Vê-lo de forma contemporânea para sua apreciação exige assumir uma atitude ingênua mas também encantadora como se lêssemos um conto da nossa infância. Seus cenários são como uma obra teatral, onde o espectador deve deixar de lado sua credulidade e encher-se de imaginação.
A favor do filme podemos ressaltar que a maioria dos cenários não são produto de efeitos especiais mas sim de decorações no local e na escala real. Todos eles refletem uma aparência de magnificência e luxo. Trata-se de espaços muito amplos e de grande altura, com superfícies brilhantes e bem diferenciadas entre cada uma das culturas que são apresentadas. Resolve o desafio de levar à telona construções sólidas e tridimensionais, tectônicas e palpáveis que, diferentemente das vinhetas, encontram-se afetadas pela gravidade.
A civilização alienígena dentro do filme é claramente uma sociedade pós-moderna. Sua imagem tecnológica, quase mágica, combina-se com uma multiplicidade de referenciais históricos para criar uma identidade reconhecível porém inovadora. Seus espaços são claramente sociais, lugares de adoração de uma figura divina encarnada no seu cruel governante. Sua escala reflete seu poder. É uma civilização mecanizada em um jogo de guerra para o entretenimento do seu imperador.
A Falha da Adaptação
Há um ditado no mundo do cinema que diz que tudo tem relação com "Star Wars", e ironicamente George Lucas antes de dirigir o primeiro filme da sua emblemática saga tinha pensado em realizar a adaptação de Flash Gordon. Entretanto, seus planos foram frustrados diante da negativa de Dino De Laurentis, que tinha além dos direitos do personagem, a intenção de levar ao cinema sua própria visão.
Para isso foi contratado o diretor Nicolas Roeg, que após um ano de trabalho no roteiro, criou uma visão metafísica e messiânica do personagem. Para De Laurentis isso se afastava totalmente do espírito original dos comics, e após sérias discussões Roeg abandonou o projeto. Depois de longo período de pré-produção com uma equipe que não conseguia coordenar um roteiro convincente, De Laurentis recorreu ao diretor Mike Hodges que enfrentou uma filmagem difícil porque o filme carecia de estrutura e apostava seu êxito aos muito elaborados e extravagantes cenários e figurinos. Cada parte do elenco e da equipe de trabalho tinha uma ideia de filme que não coincidia com os demais.
Porém, o maior responsável do seu fracasso precisamente foi George Lucas, que três anos antes havia surpreendido o mundo com um filme de ficção científica.
CENAS CHAVE
1. O Clichê do Cientista Maluco
Para enfatizar o caráter excêntrico do Dr. Zarkov a imagem do seu laboratório faz referência aos filmes de ficção científica mais clássicos, um lar escuro em meio a um terreno inóspito.
2. Ficção Auto-paródica
O filme procurou ser uma cópia do desenho animado adotando um estilo colorido e barroco que foi rotulado como uma adaptação do estilo caricaturado.
3. Ecleticismo Futurista
O palácio de Ming pertence às utopias pós-modernas. Suas grandes torres combinam o construtivismo russo e art deco com traços históricos e tecnologias impossíveis.
4. Escala e Monumentalidade
Os cenários do filme transmitem magnificência e luxo. Seus espaços são de grande amplitude e altura, que buscam intimidar o espectador e refletir o poder do seu imperador.
5. Multiculturalidade Espacial
Os figurinos das diferentes raças que habitam Mongo combinam traços históricos terrestres com elementos futuristas, obcecados por criar um ambiente exótico e misterioso.
6. Influência Oriental
Apesar da multiculturalidade, os cenários e figurinos possuem uma predominância asiática que reflete o interesse do comic por mostrar uma civilização com uma grande profundidade histórica.
7. Frieza e Lógica do Modernismo
Os centros tecnológicos de Ming possuem uma ambientação moderna onde predomina um caráter frio e monocromático, assim como um uso lógico das formas nos cenários.
8. Influência da Época de Ouro
Mesmo em plena a "Nova Onda" da ficção científica, a tecnologia dentro do filme é um reflexo claro da época clássica, cheia de clichês e a figura do cientista maluco.
9. Tom Escuro e Sadomasoquista
A crueldade de Ming é mostrada através de terríveis castigos e torturas. Certos figurinos fazem referência a imagem de carrascos medievais e a figura emblemática de uma dominatrix.
10. A Cidade que se Opõe a Gravidade
Sky City é um lugar dos homens falcões. Seu reino flutuante exibe leveza nas suas grandes torres e cúpulas onde predominam os tons prateados e o uso de vidro.
11. Influências Históricas Terrestres
Os cenários interiores combinam o estilo dos filmes espaciais clássicos com traços de uma cultura romana. Uma arena de gladiadores é mantida gravitando como elementos principal.
12. Catedrais de Outros Mundos
Em uma aproximação, as estruturas dentro de Sky City exibem um pós-modernismo histórico que combina as proporções de uma catedral com Arte Déco e high-tech de pré-fabricados.
FICHA TÉCNICA
Data de Estreia: 1 de Abril 1980
Duração: 111 min.
Gênero: Aventura / Ficção Científica
Diretor: Mike Hodges
Roteiro: Lorenzo Semple Jr.
Fotografia: Gilbert Taylor
Adaptação: Flash Gordon, desenho animado
SINOPSE
Flash é um jogador de futebol americano que em companhia da bela Dale Arden volta a cidade de Nova Iorque depois de longas férias. O avião onde viajam tem apresenta um problema em estranhas condições e chegam ao laboratório do excêntrico cientista russo Hans Zarkov, tornando-se passageiros involuntários em direção ao planeta Mongo.
Ao chegar no tal planeta, Flash e a companhia conhecem o malévolo imperador Ming, que os seus planos de conquista inclui o ataque à terra com terríveis desastres naturais. Flash deverá embarcar em uma cruzada espacial onde o destino da humanidade está em risco.